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A Constelação Familiar Sistêmica e a Epigenética

Texto será estruturado em seções para dar fluidez, mesclando fundamentação científica com a visão terapêutica e sistêmica.

Nos últimos anos, a psicologia, a terapia sistêmica e as ciências biológicas têm dialogado cada vez mais, revelando como experiências emocionais, traumas e vivências familiares podem atravessar gerações e influenciar a vida de cada indivíduo. Nesse cenário, dois campos ganham destaque: a Constelação Familiar Sistêmica, desenvolvida por Bert Hellinger, e os avanços científicos da Epigenética, área que estuda como fatores ambientais e emocionais modulam a expressão dos genes sem alterar a sequência do DNA.

A convergência entre esses dois campos oferece uma compreensão profunda do ser humano: somos herdeiros não apenas do patrimônio genético, mas também das histórias, dores, silêncios e forças de nossas famílias. Este artigo busca explorar esse diálogo, mostrando como a Constelação Familiar e a Epigenética se encontram na explicação de fenômenos que atravessam gerações e moldam comportamentos, emoções e destinos.

1. O que é a Constelação Familiar Sistêmica?

A Constelação Familiar Sistêmica é uma abordagem terapêutica criada pelo filósofo e terapeuta alemão Bert Hellinger (1925–2019). Seu objetivo é revelar as dinâmicas ocultas que atuam no inconsciente familiar e que podem estar na raiz de dificuldades emocionais, relacionais ou até mesmo físicas de um indivíduo.

Hellinger observou que famílias funcionam como sistemas, regidos por leis sistêmicas, também chamadas de Ordens do Amor:

  1. Pertencimento – todos têm direito de fazer parte da família, ninguém pode ser excluído.
  2. Hierarquia – quem veio antes tem precedência sobre quem veio depois (pais antes dos filhos, irmãos mais velhos antes dos mais novos).
  3. Equilíbrio entre dar e receber – nas relações, especialmente nos vínculos de casal, precisa haver troca para que a relação seja saudável.

Quando essas leis são violadas, podem surgir emaranhamentos, onde um descendente inconscientemente repete ou carrega destinos de ancestrais excluídos, esquecidos ou injustiçados. Assim, dificuldades atuais podem estar ligadas a eventos não resolvidos de gerações anteriores: mortes precoces, abortos, exclusões, segredos, crimes ou sofrimentos não elaborados.

A Constelação busca trazer à luz essas dinâmicas, permitindo que o indivíduo encontre um lugar saudável no sistema familiar e libere cargas emocionais herdadas.

2. O que é Epigenética?

A Epigenética é um campo da biologia que estuda como fatores ambientais e emocionais influenciam a expressão dos genes. A palavra “epigenética” vem do grego “epi”, que significa “sobre” ou “acima de”. Assim, trata-se de algo que “está sobre o gene” e regula sua ativação ou desativação.

Enquanto a genética tradicional foca na sequência do DNA, a epigenética investiga os mecanismos químicos que controlam como e quando os genes são expressos. Entre os principais processos epigenéticos estão:

  • Metilação do DNA – adição de grupos químicos que silenciam ou ativam genes.
  • Modificação de histonas – proteínas que ajudam a compactar o DNA e influenciam a acessibilidade dos genes.
  • RNA não codificante – moléculas que regulam a tradução de genes em proteínas.

O mais interessante é que essas modificações epigenéticas podem ser herdadas. Isso significa que experiências traumáticas, situações de fome, guerra, abuso ou estresse intenso vividas por uma geração podem deixar marcas biológicas que passam para filhos e netos.

Um dos estudos mais conhecidos é o realizado com os descendentes da Grande Fome Holandesa (1944-1945), mostrando que filhos e netos de pessoas que sofreram desnutrição apresentaram maior predisposição a doenças metabólicas. Outro exemplo são pesquisas com filhos e netos de sobreviventes do Holocausto, que revelaram alterações epigenéticas relacionadas ao estresse pós-traumático.

Assim, a epigenética mostra que nossa história não começa apenas em nós, mas está profundamente ligada às vivências de nossos ancestrais.

3. O Ponto de Encontro: Constelação Familiar e Epigenética

Quando olhamos para a Constelação Familiar e para a Epigenética, percebemos que ambas falam sobre heranças invisíveis que atravessam gerações.

  • A Constelação mostra que padrões emocionais, relacionais e até mesmo destinos podem se repetir quando algo não foi integrado no sistema familiar.
  • A Epigenética demonstra que traumas e experiências intensas podem deixar marcas biológicas que influenciam descendentes.

Em outras palavras, o que Hellinger percebeu de forma fenomenológica – a repetição transgeracional de dores e destinos – encontra respaldo científico nos achados da epigenética.

Por exemplo:

  • Uma mulher que sente uma tristeza sem causa aparente pode estar conectada a uma bisavó que perdeu um filho e cuja dor nunca foi reconhecida.
  • Um jovem com pânico pode estar repetindo inconscientemente um trauma de guerra vivido por seu avô.
  • Problemas de infertilidade ou sintomas físicos podem ter raízes em exclusões ou segredos familiares que permanecem no inconsciente coletivo da família.

O que a constelação revela no campo sistêmico, a epigenética ajuda a explicar biologicamente: os traumas deixam marcas que podem ser herdadas.

4. As Marcas Invisíveis: Como o Trauma se Transmite

A transmissão transgeracional do trauma é hoje um campo de estudo interdisciplinar.

Na epigenética, entende-se que quando um indivíduo passa por experiências intensas de dor, medo ou privação, seu corpo responde liberando hormônios do estresse, como o cortisol. Isso gera alterações químicas no DNA que podem ser repassadas para as próximas gerações.

Na Constelação Familiar, o trauma não elaborado cria um vazio ou exclusão no sistema, e um descendente, em lealdade inconsciente, pode se identificar com o excluído e repetir seu destino.

Essa transmissão pode se manifestar de várias formas:

  • Sintomas físicos (doenças autoimunes, predisposições metabólicas).
  • Sintomas emocionais (ansiedade, depressão, medos sem causa aparente).
  • Comportamentos repetitivos (dificuldade em prosperar, relacionamentos instáveis, dependências).

A ligação é clara: tanto a ciência quanto a abordagem sistêmica afirmam que o passado não resolvido permanece vivo no presente.

5. Cura e Transformação: o que cada campo oferece

A boa notícia é que tanto a Epigenética quanto a Constelação Familiar apontam para a possibilidade de transformação.

  • Na epigenética, estudos mostram que mudanças no estilo de vida (alimentação, prática de exercícios, redução do estresse, vínculos saudáveis) podem reverter marcas epigenéticas negativas. Ou seja, não somos prisioneiros de nossa herança, temos poder de ressignificação.
  • Na Constelação Familiar, o reconhecimento das dinâmicas ocultas e a reconexão com os ancestrais trazem integração, paz e força para seguir adiante. Quando um membro da família reconhece e honra aqueles que vieram antes, libera o sistema de repetições inconscientes.

Assim, tanto no nível biológico quanto no nível emocional e espiritual, é possível curar feridas herdadas e abrir caminho para novas histórias.

6. Exemplos Práticos

Caso 1 – Medo sem explicação

Uma paciente desenvolve crises de pânico ao ouvir aviões passando. Não há histórico pessoal que justifique o medo. Na constelação, descobre-se que seu avô viveu em uma região de bombardeios durante a guerra. Estudos epigenéticos já comprovaram que descendentes de sobreviventes de guerra apresentam alterações ligadas ao estresse.

Caso 2 – Problemas de fertilidade

Uma mulher não consegue engravidar mesmo após tentativas médicas. Em constelação, aparece a exclusão de uma tia-avó que perdeu um bebê e nunca foi reconhecida. Após o trabalho terapêutico, a paciente consegue liberar a carga. A epigenética mostra que perdas gestacionais não elaboradas podem alterar padrões hormonais em descendentes.

Caso 3 – Escassez financeira

Um jovem tem dificuldade de prosperar e sempre perde o que conquista. Em constelação, surge a identificação com um bisavô que perdeu todas as terras em uma crise. Esse trauma coletivo pode deixar marcas epigenéticas ligadas ao estresse e à insegurança.

7. O Futuro da Integração entre Ciência e Terapia Sistêmica

A ciência ainda está caminhando para comprovar, com evidências mais robustas, como os traumas emocionais se transmitem. Mas a epigenética já deu os primeiros passos para explicar fenômenos que a Constelação Familiar observa há décadas.

Esse diálogo aponta para um futuro promissor, onde psicologia, terapia sistêmica e biologia poderão caminhar juntas na compreensão integral do ser humano. Afinal, não somos apenas corpo, nem apenas mente, nem apenas história. Somos a união de todas essas dimensões.

8. Conclusão

A Constelação Familiar Sistêmica e a Epigenética mostram que carregamos em nós muito mais do que nossas escolhas pessoais. Herdamos memórias, dores, traumas, mas também forças, talentos e possibilidades de cura.

O que antes parecia “místico” ou “inexplicável” hoje encontra respaldo científico: as marcas emocionais realmente podem atravessar gerações. E, ao mesmo tempo, tanto a ciência quanto a terapia sistêmica nos lembram que é possível transformar, curar e reescrever a própria história.

Reconhecer os que vieram antes, dar lugar aos excluídos e cuidar do nosso corpo e mente são passos fundamentais para liberar o fluxo da vida e permitir que as próximas gerações floresçam com mais leveza.

Assim, Constelação Familiar e Epigenética não são apenas campos separados, mas dois olhares complementares para o mesmo mistério humano: a herança invisível que nos habita.

 Referências

BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Vozes, 2015.

COSTA, Décio; KÜBLER, Iris. A Prática das Constelações Familiares. São Paulo: Cultrix, 2019.

FRANKE-GRICKSCH, Marianne. Você é um de nós: Constelações Familiares com Crianças e Adolescentes. São Paulo: Cultrix, 2014.

HELLINGER, Bert. Ordens do Amor: um guia para o trabalho com Constelações Familiares. São Paulo: Cultrix, 2001.

HELLINGER, Bert. A Simetria Oculta do Amor: como as Ordens do Amor influenciam os relacionamentos. São Paulo: Cultrix, 2018.

HELLINGER, Bert. Constelações Familiares: o reconhecimento das ordens do amor. São Paulo: Cultrix, 2017.

MILLER, Alice. O drama da criança bem-dotada: como os pais podem moldar a vida emocional dos filhos. Rio de Janeiro: Best Seller, 2016.

RACHEL, Yehuda; BIERER, Linda M. “Transgenerational transmission of cortisol and PTSD risk”. Progress in Brain Research, v. 167, p. 121-135, 2008.

RIDLEY, Matt. O Genoma: a autobiografia de uma espécie em 23 capítulos. Rio de Janeiro: Record, 2001.

SHAPIRO, Jeremy A. “Epigenetics and Psychotherapy: Harnessing the Power of Experience”. Journal of Psychotherapy Integration, v. 28, n. 3, p. 337–352, 2018.

WADDINGTON, C. H. The Strategy of the Genes. London: Allen & Unwin, 1957.

YOUNG, Jeffrey E. Terapia do Esquema: guia de técnicas cognitivo-comportamentais inovadoras. Porto Alegre: Artmed, 2016.

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