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Bases científicas e terapeutas que influenciaram a Constelação de Bert Hellinger

Introdução

A Constelação Familiar Sistêmica, criada por Bert Hellinger, é hoje uma das abordagens terapêuticas mais difundidas no mundo, utilizada em contextos clínicos, jurídicos, pedagógicos, organizacionais e espirituais. Sua força reside na simplicidade da prática, aliada a uma profunda compreensão dos sistemas humanos e das dinâmicas inconscientes que regem as relações familiares.

Embora alguns críticos apontem a Constelação como uma prática de difícil categorização científica, não se pode negar que ela é fruto de décadas de observação, estudos e integração de diversas influências psicológicas, filosóficas e científicas. Hellinger não criou sua abordagem no vazio; ao contrário, ele foi moldado por tradições terapêuticas importantes do século XX e por pesquisas em campos como a Psicanálise, Psicodrama, Terapia Gestalt, Análise Transacional, Terapia Familiar Sistêmica e Fenomenologia.

O objetivo deste artigo é apresentar as bases científicas e os terapeutas que mais influenciaram Bert Hellinger em sua jornada, oferecendo ao leitor um panorama claro de como a Constelação Familiar se enraíza em saberes já consolidados, ao mesmo tempo em que inaugura uma forma inovadora de lidar com a psique e os vínculos humanos.

1. A trajetória de Bert Hellinger: do missionário ao terapeuta

Antes de explorar suas bases, é importante entender o caminho de vida de Bert Hellinger.

  • Nascido em 1925, na Alemanha, Hellinger viveu a experiência da Segunda Guerra Mundial e do nazismo, o que o fez refletir sobre ordens sociais, obediência cega e exclusão.
  • Foi missionário católico entre os Zulus, na África do Sul, onde permaneceu 16 anos. Lá, aprendeu com as comunidades africanas uma visão coletiva, ritualística e espiritual da vida, que mais tarde influenciaria sua percepção de pertencimento nos sistemas familiares.
  • Retornando à Europa, Hellinger mergulhou em estudos de psicologia, psicanálise e diversas formas de terapia, integrando em sua prática o que cada abordagem tinha de mais eficaz.
  • O resultado foi a formulação da Constelação Familiar Sistêmica, que se consolidou a partir da década de 1990 como um método inovador de reconciliação e integração familiar.

2. As bases científicas da Constelação Familiar

2.1 Teoria Geral dos Sistemas

A Teoria Geral dos Sistemas, proposta por Ludwig von Bertalanffy nos anos 1940, foi fundamental para a compreensão de Hellinger sobre a família.
Segundo essa teoria, nenhum indivíduo pode ser compreendido isoladamente; todos estão inseridos em sistemas interdependentes. Assim, cada membro da família é parte de uma rede que busca equilíbrio e homeostase.

Essa visão sistêmica explica por que exclusões, segredos ou desequilíbrios em gerações passadas podem influenciar descendentes. A constelação aplica esse princípio ao mostrar que quando alguém é esquecido ou rejeitado, o sistema se reorganiza, muitas vezes gerando sintomas ou conflitos em outros membros.

2.2 Fenomenologia de Edmund Husserl e Martin Heidegger

A prática da constelação é essencialmente fenomenológica.
Hellinger adotou a postura fenomenológica ao pedir que o terapeuta suspenda julgamentos, teorias ou explicações racionais, permitindo que o fenômeno se revele por si mesmo no campo das constelações.

Essa atitude de “não saber” e de deixar que as imagens familiares emergentes conduzam o processo é uma aplicação direta da fenomenologia de Husserl, continuada por Heidegger, e traduzida em um método terapêutico experiencial.

2.3 Psicanálise freudiana e pós-freudiana

A Psicanálise, iniciada por Sigmund Freud, também deixou marcas profundas em Hellinger. O conceito de inconsciente, transferência e repetição foi essencial para compreender como conteúdos reprimidos e lealdades ocultas se manifestam através de gerações.

Hellinger dialogou ainda com Carl Gustav Jung, incorporando a noção de inconsciente coletivo e de arquétipos, que aparecem simbolicamente nas constelações.

2.4 Terapia Sistêmica Familiar

A Terapia Familiar Sistêmica, desenvolvida por nomes como Murray Bowen, Salvador Minuchin e Virginia Satir, foi outra base direta. Ela propõe que problemas individuais refletem dinâmicas familiares mais amplas.
De Satir, Hellinger herdou a visão da importância da comunicação e dos papéis familiares. De Bowen, o conceito de lealdades invisíveis e transmissão transgeracional de padrões.

2.5 Psicodrama de Jacob Levy Moreno

O Psicodrama, criado por Moreno, também foi uma inspiração clara.
No psicodrama, os participantes representam papéis em uma cena, permitindo acesso a emoções inconscientes.
Na Constelação, representantes assumem posições dentro de um campo relacional, manifestando sentimentos e movimentos semelhantes — mas de forma mais intuitiva e fenomenológica, sem roteiro ou interpretação teatral.

2.6 Gestalt-Terapia de Fritz Perls

Da Gestalt, Hellinger absorveu a ideia de que a experiência acontece no aqui e agora. A constelação, assim como a Gestalt, busca trazer à consciência aquilo que se manifesta no presente, em vez de interpretar o passado de forma intelectualizada.

2.7 Análise Transacional de Eric Berne

A Análise Transacional trouxe contribuições sobre os jogos psicológicos, as máscaras e os contratos inconscientes estabelecidos entre pessoas. Isso dialoga com as lealdades familiares invisíveis que Hellinger observava em sua prática.

2.8 Contribuições da Etologia e da Biologia

Hellinger também se inspirou em observações da natureza e da biologia.
As leis de pertencimento, hierarquia e equilíbrio (que ele chamou de “ordens do amor”) lembram princípios encontrados em comunidades animais e em sistemas biológicos, reforçando a ideia de que a família é um organismo vivo com regras próprias de autorregulação.

3. Terapeutas que mais influenciaram Bert Hellinger

3.1 Virginia Satir

Conhecida como “mãe da terapia familiar”, Satir defendia que cada pessoa precisa ser reconhecida e incluída no sistema. Essa ideia ecoa diretamente na primeira ordem do amor em Hellinger: todo membro da família tem direito a pertencer.

3.2 Murray Bowen

Bowen trouxe a noção de que padrões emocionais e psicológicos são transmitidos de geração em geração. Esse conceito foi essencial para Hellinger entender por que netos podem repetir destinos de avós que nunca conheceram.

3.3 Jacob Levy Moreno

Criador do psicodrama, Moreno mostrou o poder terapêutico da representação simbólica. A diferença é que Hellinger não utilizava roteiro, mas permitia que o campo morfogenético (ou campo relacional) guiasse a vivência.

3.4 Milton Erickson

O hipnoterapeuta Milton H. Erickson influenciou Hellinger em sua forma de trabalhar com linguagem simples, metáforas e confiança na sabedoria inconsciente do cliente. A postura de flexibilidade e intuição do terapeuta na constelação tem raízes ericksonianas.

3.5 Carl Gustav Jung

Jung inspirou Hellinger com sua visão dos arquétipos e do inconsciente coletivo. Muitas imagens que surgem em constelações (como morte, reconciliação, maternidade) têm forte carga arquetípica.

3.6 Ruth McClendon e Les Kadis

Foram pioneiros na observação de esculturas familiares, nas quais pessoas se posicionavam fisicamente para representar membros de uma família. Essa técnica foi um passo direto para a formulação da constelação.

3.7 Alfred Adler

Adler, discípulo dissidente de Freud, trouxe a ideia de que o indivíduo é profundamente influenciado por sua família de origem e pela ordem de nascimento — algo que Hellinger também observou em seu trabalho.

4. Integração criativa de Hellinger

O diferencial de Bert Hellinger foi sua capacidade de integrar diversas influências, extraindo o essencial de cada uma e fundindo em um método próprio.
Enquanto muitos terapeutas permanecem fiéis a uma única escola, Hellinger se permitiu ser um síntese viva de múltiplos saberes.

Ele observava atentamente os fenômenos e, com base em sua experiência, estabeleceu as chamadas Ordens do Amor:

  1. Pertencimento – todos os membros da família têm o direito de pertencer.
  2. Hierarquia – quem veio antes tem precedência sobre quem veio depois.
  3. Equilíbrio entre dar e receber – as relações buscam compensação e equilíbrio.

Esses princípios, embora simples, se mostraram revolucionários para compreender dinâmicas de sofrimento e reconciliação.

5. Críticas e reconhecimento

A Constelação Familiar já foi criticada por sua falta de enquadramento dentro dos moldes tradicionais da ciência, especialmente por seu caráter fenomenológico e espiritual.

No entanto, cada vez mais pesquisas em epigenética, neurociência e psicologia transgeracional oferecem respaldo às observações de Hellinger, mostrando que traumas e experiências podem ser transmitidos biologicamente e que a inclusão e reconciliação têm efeitos terapêuticos profundos.

Atualmente, a Constelação é reconhecida em tribunais no Brasil, utilizada em contextos educacionais e estudada em universidades, o que reforça sua relevância social.

Conclusão

A Constelação Familiar Sistêmica de Bert Hellinger não surgiu do nada. Ela é fruto de uma longa tradição de saberes científicos e terapêuticos que, somados à experiência de vida e à sensibilidade de Hellinger, deram origem a uma prática inovadora.

Ao integrar a Teoria dos Sistemas, a Fenomenologia, a Psicanálise, a Terapia Familiar, o Psicodrama, a Gestalt, a Análise Transacional e a espiritualidade, Hellinger criou um método que toca as profundezas da alma humana.

Reconhecer os terapeutas e bases científicas que influenciaram sua trajetória não diminui sua originalidade, mas mostra que sua obra é ao mesmo tempo herdeira e inovadora.

A Constelação Familiar, portanto, representa um diálogo vivo entre ciência, filosofia e prática terapêutica, revelando que os destinos humanos estão entrelaçados por laços muito mais profundos do que imaginamos.

 Referências

BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Vozes, 2015.

BOWEN, Murray. Family Therapy in Clinical Practice. New York: Jason Aronson, 1978.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1992.

COSTA, Décio; KÜBLER, Iris. A Prática das Constelações Familiares. São Paulo: Cultrix, 2019.

FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 2017.

FRANKE-GRICKSCH, Marianne. Você é um de nós: Constelações Familiares com Crianças e Adolescentes. São Paulo: Cultrix, 2014.

HELLINGER, Bert. Ordens do Amor: um guia para o trabalho com Constelações Familiares. São Paulo: Cultrix, 2001.

HELLINGER, Bert. Constelações Familiares: o reconhecimento das ordens do amor. São Paulo: Cultrix, 2017.

HELLINGER, Bert. A simetria oculta do amor. São Paulo: Cultrix, 2018.

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2016.

LEWIN, Kurt. Principles of Topological Psychology. New York: McGraw-Hill, 1936.

MORENO, Jacob L. Fundamentos do Psicodrama. São Paulo: Summus, 1993.

ROGERS, Carl R. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

SATIR, Virginia. Terapia do Casal. São Paulo: Cultrix, 1988.

SATIR, Virginia. Conjoint Family Therapy. Palo Alto: Science and Behavior Books, 1964.

Linha do Tempo – As Bases da Constelação Familiar de Bert Hellinger

1875 – Carl Gustav Jung (Psicologia Analítica)

  • Introduziu o conceito de inconsciente coletivo e arquétipos.
  • Sua visão de que carregamos conteúdos herdados da ancestralidade foi um alicerce para pensar as lealdades invisíveis do sistema familiar.

1890 – Jacob Levy Moreno (Psicodrama)

  • Criador do psicodrama e das constelações sociométricas.
  • Usava representações teatrais para que pessoas pudessem enxergar seus vínculos e papéis sociais.
  • Grande inspiração para a ideia de representantes na Constelação Familiar.

1902 – Kurt Lewin (Psicologia Social e Teoria de Campo)

  • Desenvolveu a Teoria de Campo, que explica como os indivíduos estão sempre inseridos em contextos de forças e relações.
  • Sua visão ajudou a compreender o campo sistêmico onde os fenômenos familiares se manifestam.

1902 – Viktor Frankl (Logoterapia)

  • Criador da Logoterapia.
  • Trouxe a importância de encontrar sentido para o sofrimento, algo muito presente no olhar sistêmico.
  • Influenciou Hellinger na ideia de que o amor e o sentido são forças que curam.

1913 – Ludwig von Bertalanffy (Teoria Geral dos Sistemas)

  • Desenvolveu a Teoria Geral dos Sistemas.
  • Mostrou que nenhum elemento existe isolado; tudo funciona como parte de um sistema interconectado.
  • Hellinger usou essa base para pensar a família como um sistema vivo.

1916 – Carl Rogers (Abordagem Centrada na Pessoa)

  • Criou a psicoterapia baseada em empatia, aceitação e escuta profunda.
  • Hellinger incorporou essa postura de não julgamento e acolhimento.

1916 – Murray Bowen (Teoria Sistêmica Familiar)

  • Um dos fundadores da Terapia Familiar Sistêmica.
  • Introduziu conceitos como diferenciação do self e transmissão multigeracional.
  • Hellinger expandiu essa visão para incluir fenômenos transgeracionais mais amplos.

1916 – Virginia Satir (Terapia Familiar Estrutural)

  • Conhecida como “Mãe da Terapia Familiar”.
  • Trazia exercícios vivenciais em grupo e buscava reconexão emocional entre familiares.
  • Hellinger aprendeu com ela e integrou a dimensão vivencial e fenomenológica em suas constelações.

1940 – Joseph Campbell (Mitologia e Jornada do Herói)

  • Estudou mitos e histórias universais, criando a Jornada do Herói.
  • Mostrou que a vida humana é atravessada por narrativas arquetípicas e rituais de passagem.
  • Hellinger percebeu a importância de dar lugar à história do clã familiar como parte de uma jornada.

1970 em diante – Bert Hellinger (Constelação Familiar)

  • Reuniu todos esses aportes científicos, filosóficos e vivenciais.
  • Criou a prática da Constelação Familiar Sistêmica, trazendo as Ordens do Amor (pertencimento, hierarquia e equilíbrio).
  • Seu trabalho mostra como traumas, perdas e exclusões reverberam no sistema familiar até serem reconhecidos e incluídos.

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