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Epigenética, Constelação: abortos e natimortos esquecidos e como influenciam o Sistema Familiar

A história de uma família é feita de encontros, nascimentos, despedidas e, muitas vezes, também de perdas silenciosas. Abortos espontâneos, provocados ou natimortos fazem parte da biografia de muitas mulheres e famílias, mas em muitos casos permanecem em silêncio, escondidos ou não reconhecidos.

Essas perdas, quando não recebem lugar de honra e reconhecimento, podem gerar repercussões que atravessam gerações. A Constelação Familiar Sistêmica, desenvolvida por Bert Hellinger, mostra que todo membro do sistema tem direito a pertencer. Quando alguém é esquecido ou excluído, cria-se um vazio no sistema, e descendentes podem carregar de forma inconsciente esse peso.

A ciência, por meio da Epigenética, também vem demonstrando que traumas e perdas intensas podem deixar marcas biológicas que se transmite aos descendentes. Assim, tanto no campo fenomenológico quanto no biológico, percebemos que abortos e natimortos não elaborados têm impacto real nas gerações seguintes.

Este artigo busca compreender como esses dois olhares — o sistêmico e o científico — podem dialogar para iluminar e transformar dores familiares invisíveis.

1. O lugar dos abortos e natimortos no sistema familiar

Na visão da Constelação Familiar, todos que fazem parte da família têm direito de pertencer, independentemente do tempo de vida. Isso inclui:

  • Filhos que nasceram vivos.
  • Filhos abortados espontaneamente.
  • Filhos abortados provocadamente.
  • Filhos natimortos.

Quando um bebê é perdido, muitas vezes a dor é tão grande que os pais ou a família preferem silenciar. Em alguns casos, o aborto é vivido com culpa e segredo. Em outros, o natimorto é tratado como se “não tivesse existido”.

Mas na ordem sistêmica, esse filho existe. E se ele não é lembrado, alguém em gerações posteriores pode carregar esse pertencimento negado. Isso se manifesta em repetições, sintomas ou até dificuldades existenciais.

Alguns exemplos de emaranhamentos comuns:

  • Um filho vivo sente um vazio ou tristeza sem explicação — como se não pudesse ocupar plenamente seu lugar.
  • Um descendente repete padrões de perdas, fracassos ou até dificuldade de viver — em lealdade a um irmão não reconhecido.
  • Filhos posteriores podem carregar sentimentos de culpa ou não pertencimento, por ocupar o lugar de um irmão que “veio antes”.

Quando o aborto ou o natimorto recebe um lugar de reconhecimento amoroso, o sistema se reorganiza.

2. A perspectiva da Epigenética

A Epigenética nos ajuda a compreender como experiências de trauma, dor ou perdas podem deixar marcas não apenas emocionais, mas também biológicas.

Pesquisas indicam que situações intensas, como a perda de um filho, geram níveis elevados de estresse e mudanças hormonais que podem influenciar o DNA por meio de processos epigenéticos (metilação do DNA, alterações em histonas, etc.).

Essas alterações podem ser transmitidas aos descendentes, influenciando sua vulnerabilidade a doenças, estados emocionais ou dificuldades psicológicas.

Exemplos de descobertas relevantes:

  • Estudos com sobreviventes do Holocausto e seus filhos mostraram alterações epigenéticas ligadas ao estresse.
  • Pesquisas com mulheres que sofreram perdas gestacionais revelam que os filhos posteriores podem apresentar alterações hormonais e emocionais relacionadas ao trauma da mãe.
  • Descendentes de mães que viveram abortos ou natimortos apresentam, em alguns casos, maior risco de ansiedade e depressão.

Ou seja, aquilo que foi vivido em silêncio no corpo de uma mãe pode atravessar gerações por meio da epigenética.

3. A interseção entre Constelação Familiar e Epigenética

O que a Constelação observa no campo das dinâmicas familiares, a Epigenética comprova no campo científico.

  • Constelação: todo filho tem direito ao pertencimento, mesmo que não tenha vivido. Quando excluído, outro membro da família pode carregar seu destino.
  • Epigenética: perdas intensas geram alterações no organismo da mãe (ou da família) que podem ser biologicamente transmitidas a descendentes.

Essa interseção nos mostra que não se trata apenas de “crença” ou de “herança genética”: trata-se de uma herança invisível que une corpo, emoção e memória transgeracional.

4. Quando o silêncio se transforma em sintoma

Muitas famílias carregam sintomas que, quando observados com profundidade, podem estar ligados a abortos ou natimortos esquecidos.

Alguns exemplos práticos:

  • Filhos arco-íris (crianças que nascem após uma perda) podem carregar uma sensação inconsciente de substituir alguém. Isso pode gerar insegurança, medo de não ser suficiente ou até comportamentos autodestrutivos.
  • Filhos mais novos podem sentir um vazio existencial ou se identificar com irmãos que não nasceram.
  • Mães que não elaboraram suas perdas podem desenvolver sintomas de ansiedade, depressão ou somatizações.

Esses sintomas não são conscientes. Eles surgem como expressões do sistema tentando “lembrar” aquilo que foi esquecido.

5. O caminho da cura no olhar sistêmico

Na Constelação Familiar, o processo de cura acontece quando o filho perdido recebe um lugar de pertencimento. Isso pode ser feito de forma simples, mas profunda:

  • Reconhecer: “Você existiu. Você é nosso filho.”
  • Dar um lugar na ordem: se foi o primeiro filho, reconhecê-lo como tal.
  • Incluir na memória familiar: ainda que breve, sua vida teve significado.

Esse reconhecimento libera os irmãos vivos da carga inconsciente de carregar a dor ou ocupar um lugar que não lhes pertence. A mãe, o pai e toda a família encontram mais paz quando dão esse espaço ao bebê perdido.

6. O caminho da transformação no olhar científico

A Epigenética também mostra que é possível reverter ou transformar as marcas epigenéticas.

Mudanças em estilo de vida, vínculos saudáveis, práticas terapêuticas e elaboração emocional podem modificar a expressão genética. Isso significa que a dor herdada pode se transformar em força, desde que seja reconhecida e acolhida.

Assim como na Constelação Familiar, a ciência confirma: não estamos condenados ao destino herdado, mas podemos escolher novas formas de viver.

7. Exemplos de integração Constelação + Epigenética

Caso 1 – O irmão esquecido

Uma mulher sente tristeza profunda sem causa aparente. Em constelação, aparece um irmão natimorto não reconhecido. Após o trabalho de inclusão, sua vida ganha leveza. A epigenética explicaria: o trauma da mãe com a perda pode ter deixado marcas no organismo transmitidas à filha.

Caso 2 – Filha substituta

Uma jovem cresceu ouvindo que nasceu para “compensar” uma perda anterior. Isso a fez viver em busca de agradar e nunca sentir-se suficiente. Ao reconhecer o irmão perdido como parte da família, encontrou liberdade.

Caso 3 – Ciclos de infertilidade

Um casal enfrenta dificuldades para engravidar. Em constelação, aparece a memória de abortos na linhagem materna não reconhecidos. Após dar lugar a essas vidas, a energia flui diferente. Pesquisas epigenéticas mostram que perdas gestacionais podem alterar hormônios reprodutivos das descendentes.

8. O futuro da integração: ciência e terapia de mãos dadas

A ciência da epigenética está apenas começando a desvendar os mistérios da transmissão transgeracional. Já a Constelação Familiar, de forma fenomenológica, observa essas dinâmicas há décadas.

Quando unimos os dois olhares, temos uma compreensão mais completa:

  • A Constelação nos mostra como os emaranhamentos acontecem.
  • A Epigenética nos mostra por que biologicamente eles se perpetuam.

E ambas nos oferecem esperança: ao incluir, reconhecer e elaborar, é possível transformar a herança invisível em força de vida para as próximas gerações.

9. Conclusão

Abortos e natimortos não são apenas eventos médicos ou biológicos. São histórias de vida — ainda que breves — que deixam marcas profundas nas famílias. Quando esquecidos, silenciosos ou excluídos, eles geram desequilíbrios no sistema, influenciando filhos e netos de maneiras sutis ou explícitas.

A Constelação Familiar nos mostra que dar lugar a esses filhos é um ato de amor que libera todo o sistema. A Epigenética confirma que a dor não elaborada pode ser biologicamente transmitida, mas também pode ser transformada.

Reconhecer, incluir e honrar cada vida, por menor que tenha sido, é devolver ao sistema familiar sua ordem natural e abrir espaço para que as próximas gerações vivam mais leves, livres e em paz.

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